29 de julho de 2022.
Meu querido Freud,
Na carta anterior, falei um pouco do sonho. Não vou aqui falar dele. Na sua obra magna, A Interpretação dos Sonhos (em português, poderia ter sido O Sentido dos Sonhos), em particular, no capítulo VII, você trata da primeira tópica. Me lembro agora os processos primário e secundário. O primeiro envolve o sistema Ics, enquanto o segundo os sistemas Pcs e Cs. Não vou aqui falar desses processos, já que voltaremos a falar dele mais na frente. Não vou abordar a questão da cataxia - ou seja, a soma de excitação - e sua relação com os dois processos que acabei de mencionar. Embora seja breve nas cartas, pretendo falar aqui de algo que, depois de sua morte, passou a ser conhecido e difundido como sendo os mecanismos de defesa.
Sei que a sua filha, Anna Freud, publicou um livro que fez escola, O Ego e os Mecanismos de Defesa. Confesso que fico impressionado com a literatura em torno de tais mecanismos. Sabemos que o analista pode se deparar com o sintoma, um dos modos pelos quais assistimos o retorno do recalcado (os outros, vale lembrar, são: os sonhos, atos falhos e chistes; o primeiro tratado na Interpretação dos Sonhos; o segundo, na Psicopatologia da Vida Cotidiana; e o último, em Os Chistes e sua relação com o Inconsciente). Quando o analisante chega com algum sintoma e procura “entrar em análise”, ele, assim como o analista, vai encontrar resistências. Vejo isso como normal na análise. Porém, quando leio alguns textos sobre os mecanismos de defesa, percebo que seus autores confundem “defesa” com “resistência”.
Me explico. A defesa está ligada à reação do eu a algum tipo de ameaça interna. O sujeito, ao se “defender” de uma representação insuportável, “joga” esta para o inconsciente, ou seja, ele a recalca. O isolamento e a histeria são dois exemplos. O sujeito que se sente só ou costuma desviar o olhar diante das pessoas pode estar a evitar de confrontar-se com algum tipo de representação insuportável. Vale salientar que o recalcamento é fundamentalmente um mecanismo de defesa. Com certeza há o envolvimento das pulsões na defesa e no recalcamento, mas não vou falar delas aqui para não estender a conversa. Deixo isso para as cartas futuras.
Com relação à resistência, esta tem um outro estatuto. Não acredito ser patogênico certo nível de resistência por parte do analisante. Se este resiste não é porque faz pirraça, age com malícia ou antipatia, cria algum impedimento para “entrar em análise”. A pergunta a ser feita é: o analisante resiste a quê? Posso dizer que ele não sucumbe à própria resistência do analista. Ou seja, no fundo, quem resiste é o analista. Veja um de seus grandes casos, Dora. Você apresenta uma questão importante numa nota de rodapé e no posfácio, que deveria ter sido abordado no corpo do texto referente ao caso dela. Você afirma numa simples nota: “eu não percebi a tempo e não comuniquei a paciente que a mais forte das correntes inconscientes de sua vida era” o desejo recalcado que ela tinha pela sra. K. Porém, numa nota que você acrescentou em 1923 na parte que trata do quadro clínico, você assevera: quando o paciente afirma “Isso eu não pensei” ou “Não pensei nisso” “pode ser diretamente traduzida por: ‘Sim, isso era inconsciente para mim’.” Logo, quando você afirma que não havia percebido a direção homossexual de Dora, posso traduzir: “isso era inconsciente para mim, pois mulher se envolve com homem e não com mulher”.
A sua resistência em aceitar esse fato fez com que ela fantasiasse uma relação com o sr. K que escondia, por sua vez, o seu grande desejo pela sra. K. Ninguém é perfeito. Você é meu grande mestre e tem o direito de errar. Aquilo que você mais evitara, cometeu: você caiu na tentação da sugestão. Você caiu nas ciladas da resistência de Dora, porque você próprio tinha a sua. Para você, boa moça deve estar junto de um bom homem, nada de duas mulheres estarem juntas até que a morte as separe. Portanto, as resistências devem ser mantidas e as defesas, expostas. Ao invés de o analista se concentrar nas defesas do analisante, ele deve observar as suas resistências ou, de outro modo, as suas tentativas de sugestão. Isso implica que ele precisa fazer as seguintes perguntas: 1. Estou dirigindo o meu analisante em algum momento do setting analítico? 2. Eu vejo a resistência do analisante como algo a ser enfrentado?3. Eu vedei as dúvidas e hesitações do discurso?3. Eu me coloquei na posição de analista que realmente sabe? As respostas afirmativas dessas perguntas são indícios de que a sugestão está a operar no setting analítico e, portanto, revelam o direito que o paciente tem de resistir.
Grande lição você me dá.
Continuamos a nossa conversa na terceira carta.
Seu,
José O Barbalho