02 de agosto de 2022.
Querido Freud,
Eu lhe mencionei duas obras suas na carta anterior: a Psicopatologia e O Chiste. A primeira me chamou a atenção ao tratar do ato falho. A diferença desta para com o chiste não é difícil de demarcar. O ato falho surge do nada e nunca falha; o chiste surge à custa de trabalho e pode falhar. Um bom exemplo de ato falho ocorreu comigo. Eu estava em uma de minhas sessões e, faltando poucos minutos para o seu encerramento, eu disse à minha analista após ter lhe contado a minha vida: “O que eu posso lhe dizer...”. Este ato falho, que saiu de mim, foi certeiro, porque revela a dimensão do não-dito. De fato, já me ocorreu não dizer certas coisas, que acabam de ser ditas de algum modo. Quanto ao exemplo de chiste, vou indicar um seu que considero muito importante: a anedota americana de dois comerciantes endinheirados que, para pertencerem a high society, decidiram ser “(..) pintados pelo pintor mais hábil e caro da cidade, cujos quadros eram vistos como verdadeiros acontecimentos”. Quando os dois quadros foram exibidos no salão, o crítico de arte perguntou, após tê-los analisado por muito tempo: “E onde está o Salvador?”, apontando para o vazio entre os dois quadros. Por que esse chiste me chamou a atenção?
Ele nos mostra algo fundamental no setting analítico. O analisante, ao trazer para o setting a sua vida, traz cenas que, sozinhas, não dizem nada, mas ao serem ligadas por uma simples e oportuna questão, produzem sentido a partir do qual a análise adquire o rumo certo no tratamento. Por que não ser o vazio entre os dois quadros o inconsciente, que emerge com a fala no espaço analítico? Portanto, o analista precisa, com a sua atenção flutuante, acompanhar todas as cenas que o analisante traz sem, contudo, prender-se a nenhuma delas. Aproveito a anedota americana, para falar aqui um pouquinho do narcisismo. Quando o crítico de arte fez aquela pergunta, você nos mostra muito bem que “há um único caso como esse: Cristo pendurado entre os dois ladrões (...). O que o crítico queria dizer e não podia: (...) ‘O que me importam os seus quadros? Vocês são dois pilantras, eu sei’.” Mas o que eram os dois quadros senão retratos dos dois comerciantes? Estes olhavam para si mesmos, são pessoas egoístas, representantes do individualismo moderno. Podemos aqui afirmar que eles são narcisistas.
Encontramos a esse respeito muita literatura que trata desse sentido de narcisismo. No entanto, quando você pariu com muita dificuldade Introdução ao Narcisismo (1914), você fez desse conceito um dos mais cruciais na psicanálise e trouxe outros sentidos dele que são úteis à clínica. As pessoas não buscam o psicanalista porque se sentem egoístas ou questionam o individualismo moderno. Alguém pode chegar na clínica com a seguinte queixa: “Doutor, eu vim procurar o sr. porque me sinto muito egoísta”. Porém, durante a análise, ele descobre, por exemplo, que a sua insatisfação não era com o seu egoísmo, mas com a imagem que ele construiu de si mesmo e, nessa construção, escondeu o seu grande segredo, travando uma luta consigo mesmo. A pessoa desenvolveu o amor por uma imagem de si mesmo, da qual abriu caminho para o questionamento no setting analítico.
Poderia aqui falar de outros sentidos de narcisismo - especialmente o primário. Mas esta carta ficaria longa.
Seu,
José O Barbalho