22 de janeiro de 2023.

Meu mestre Freud,

Nesta carta, vou falar um pouco de um grande discípulo seu, que renovou a psicanálise, mantendo-se fiel a você. É um francês e se chama Jacques Lacan. Há quem o conhece e afirma que há vários Lacans: o da Linguística (Saussure) e o da Antropologia (Lévi-Strauss), o da Lógica e Matemática, sem mencionar a sua ligação com a filosofia de Hegel (via A. Kojève) e a literatura. Há quem defende que só há um. Não vou aqui, porém, entrar nesse debate acerca da unidade do pensamento do autor dos Seminários. Neste pequeno espaço, que é a nossa carta, vou comentar superficialmente alguns aspectos de seu pensamento psicanalítico. Para isso, vou me servir de um conto japonês: Num Bosque de Bambu, de Akutagawa. Não vou resumir a sua história. Antes de continuar a leitura desta carta, é necessário que você leia o conto. Você pode encontrá-lo na internet, por exemplo em https://static.fnac-static.com/multimedia/PT/pdf/9789896232788.pdf.

Há um pensamento de Lacan que me chamou muito a minha atenção e se encontra em uma de suas obras, Escritos (um dos poucos textos escritos, pois ele não era muito de escrever): “(...) a lei e o desejo recalcado são uma única e mesma coisa. O que é justamente o que Freud descobriu”. O sentido de lei deve ser tomado no sentido que Lacan pediu emprestado de Lévi-Strauss. Portanto, não é no sentido jurídico, mas antropológico. Sobre o desejo, este é desejo de transgredir. Para que haja essa transgressão, é preciso que exista proibição. Logo, como afirma Lacan, sem a lei, não há desejo. É a partir de Hegel, através dos comentários de Alexandre Kojève, que Lacan pensa o desejo. Mas não vamos aqui falar de antropologia estrutural ou filosofia hegeliana. Vamos ao nosso conto (lembre-se: você deve lê-lo).

Num lugar de difícil acesso (bosque de bambu), encontramos o que não podemos saber. Se o bambu simboliza a resistência, há uma história do sujeito que resiste a sair daquele bosque e só temos acesso a ela através da fala, do simbólico. A fonte da palavra está ali, naquele bosque; naquele corpo “esquecido” no bosque de bambu há um saber desconhecido, ou seja, um saber que o sujeito desconhece que o possui. Por meio da fala das testemunhas, vamos tendo acesso a esse saber.

A lei determina: não se deve observar os “detalhes” da mulher. O que o homem em geral faz senão recalcar esse desejo? Homens e mulheres desejam aquilo que fogem dos seus olhares ou o que é proibido (no caso de um dos personagens do conto, o desejo de ver aquele rosto da mulher escondido por um lenço)

No conto, encontramos a figura do neurótico. A pessoa aceita em submeter-se à lei e acredita estar em harmonia com ela. Ela tem dificuldade de assumir concretamente que o desejo é possível, ao contrário do que ela pensa.

Encontramos também a figura do perverso. Isso é nítido em um dos personagens. Embora aceite a lei, ele se dá ao direito de cessar a sua obrigatoriedade do jeito que lhe aprouver. Sempre a desafiar e distorcer o sentido da lei, torna-se um fora-da-lei.

Não podemos deixar de mencionar a figura do obsessivo. Em um dos personagens percebemos o dilema: ser aquela “boa mulher”, subserviente à lei, ou não? Ela também se questiona: “Por que continuo a existir? Tentei deixar de existir, mas continuo a existir”. Ela tem dificuldade de perceber que, ao perseguir o seu desejo, terá que enfrentar de algum modo a lei. É forte o seu medo de ser punida por sua transgressão.

Certamente, há várias partes do conto no qual são ricas as interpretações psicanalíticas daquele que sempre insistiu que devemos retornar a você.

Lacan é para mim um guia que ilumina o meu caminho de contínuo retorno a você.

Seu,

José O Barbalho