O pecado
O pecado é o proibido, que pode ser expresso pela frase “Você não deve”. A pessoa pode se sentir atormentada pelo pensamento que interdita o seu desejo e dizer que é culpa do diabo. Ela obedece a suposta voz que lhe diz “Você não deve”. O seu corpo, a sua pele, o seu sangue, o seu coração enviam sinais para ela, sem perceber ou não, que o castigo já lhe foi dado, não pelo diabo, por ter recusado o proibido.
A esse respeito, o caso a seguir é possivelmente esclarecedor. Uma pessoa – vamos chamá-la de Q – vive atormentada com a crença ilusória de que, se sair de casa, alguém vai fazer alguma coisa de errado contra ela. Vítima do pecado, do proibido, do “Você não deve”. Os seus familiares ficam preocupados. Por mais que alguém, pouco importa se é um ente querido, conforte e lhe aconselhe a procurar ajuda profissional, Q permanece relutante. Ela emagrece, o seu sangue é afetado e sua pele fica amarelada. A dor no seu coração é demasiado para ela.
Após alguns meses sem sair de casa, resolve procurar uma amiga confidente. Ela havia lido um livro que lhe havia despertado o interesse de buscar ajuda profissional. A amiga lhe indica um analista. Agora, sai de casa. Vai para as sessões e retorna para sua casa. Os familiares a princípio ficam felizes pela mudança de Q. No entanto, o tempo passa, as sessões se seguem e o dinheiro para pagar as sessões se tornam um fardo para os familiares que custeiam e percebem equivocadamente que o resultado não é satisfatório. Esperavam que Q não demorasse tanto na análise. Passa um ano, dois, três...dez anos e, quando tudo parecia perdido, Q decide procurar trabalho. Começa a fazer bombons e vender na feira perto de sua casa.
Neste caso, o leitor vai notar alguns passos que ela deu para enfrentar o pecado, a voz do “Você não deve”. Esses passos não seguem a lógica que estamos habituados a usar no dia a dia. Há pessoas que acreditam que o que se opõe ao pecado é a virtude. Ou seja, se Q foi procurar a amiga, fez a coisa certa (virtude); se ela foi fazer análise, também fez a coisa certa (virtude); e ao fazer a coisa certa, Q se libertaria do pecado. Não é assim, porém, que as coisas funcionam com o nosso inconsciente. A sua lógica é outra.
Há um filósofo muito útil à psicanálise. Ele se chama Kierkegaard. Tem uma obra belíssima a esse respeito: A Doença para a Morte. Ele afirma que não é a virtude que se opõe ao pecado, mas a fé. Para um autor como eu, psicanalista e para o leitor que espera que aqui encontre algo sobre a ciência fundada por Freud, as palavras de Kierkegaard podem talvez gerar algum tipo de estranhamento ou perplexidade.
Ter fé é crer, saltar-se no escuro; portanto, ela não pressupõe algo planejado, um caminho reto de premissas e conclusões logicamente construídas. Por mais que os familiares de Q acreditassem que ela estava no caminho certo (a virtude), o pecado não seria extirpado do psiquismo dela. Se alguém perguntasse para Q, o que fez com que ela se transformasse naquilo que acreditamos ser o melhor para uma pessoa, ela talvez responderia que foram a suas sessões de análise. Se a mesma pessoa que levantou essa questão, perguntasse como foi o seu processo na análise, Q poderia dar uma resposta, mas teria dúvida se aquela deveria ter sido a resposta correta.
Eu poderia ter usado para esse caso os conceitos de Supereu, Eu e Isso, ou outros tão caros à psicanálise. Mas eu tinha em mente o dizer de Kierkegaard, em sua Doença para a Morte: a fé é a verdadeira oposição ao pecado. A virtude como sua negação é uma ilusão.