O sonho de M.

Uma pessoa me contou um sonho que me chamou a atenção. Vou chamá-la de M.

Segue o seu relato do sonho.

- Eu estava numa estrada de chão relativamente estreita. De um lado e de outro havia cercas de madeira. Estava muito escuro. Quase não via nada. Apesar da escuridão intensa, continuei a caminhar. De repente me vi diante de policiais com lanternas oferecendo luz numa floresta com árvores grandes. Um deles, mais severo, me interrogou e fiquei com medo. Olhei para um outro policial como que apelando para a sua bondade e me livrasse da abordagem ameaçadora do policial severo. Não adiantou. Me tornei suspeito do crime ocorrido na floresta. Percebi uma grande poça de sangue espalhada no meio da floresta. Não me lembro de ter visto o cadáver e fiquei muito ansioso e com medo quando o policial severo me disse que eu teria que comparecer ao tribunal.

Depois de M. ter me dito o seu sonho, perguntei-lhe o que havia acontecido em seu passado recente. Ele me disse, entre outras coisas, que havia conversado com uma pessoa que tinha tido experiências muito difíceis na vida dela. Essa pessoa havia perguntado para M. se ele se sentia culpado por ter tomado certas decisões também difíceis em sua vida. M. lhe respondera que não guardava nenhum sentimento de culpa pelo que fez.

De fato, M. tomou certas decisões no curso de sua vida que abalaram quase todas as pessoas com quem ele havia convivido por muitos anos. Percebi que esse passado recente estava no sonho. Não perguntei a M. sobre o sentido do seu sonho, porque ele conhecia pouco de Freud e não havia lido a Interpretação dos Sonhos. Ele não era meu analisante. Eu o conheci há pouco tempo e não me senti, portanto, com coragem suficiente para fazer certas perguntas que envolvesse a sua intimidade. Fiquei com esse sonho guardado na memória e fui estudá-lo.

Não é difícil de perceber no sonho de M. a sua relação com algumas decisões que ele havia tomado no curso de sua vida. Ele disse que não se sentia culpado pelo que fez, mas o sonho revelou que esse sentimento existia de algum modo nele. A escuridão talvez signifique o sentimento negativo que gerou nele quando ouviu a história da pessoa com quem ele havia conversado. Possivelmente ele percebeu o quanto ele tem que percorrer nessa sua nova jornada. A ameaça de um outro, ou outros, que o julgam, certamente existe. Os policiais talvez representem essa ameaça. Não sei quais os fantasmas amedrontam M. O acesso ao seu passado remoto seria uma fonte valiosa para a compreensão da origem deles.

Uma coisa que me intrigou no sonho foi a grande poça de sangue no meio da floresta. O que pode significar para ele? Sabemos da importância do sangue na vida. Se alguém perder muito sangue, pode vir a falecer. Encontramos o sangue em expressões como “Dei o meu sangue por isso ou aquilo”. Também podemos encontrá-lo no mito de Narciso. Se esta figura trágica da mitologia grega cometeu suicídio sangrento, então como podemos interpretar o narcisismo de M.? O sangue não seria dele mesmo? Ou melhor, se as decisões que M. havia tomado foram cruciais para a sua vida, o sangue não poderia representar o fim de um ciclo da vida dele?

De volta à escuridão. Na mitologia grega há uma figura que é a sua personificação: o deus Erebos. Diferentemente da personificação da noite (Nyx), ele não admite ser penetrado pelas estrelas, a lua e o Sol. M. não havia dito que estava no meio da noite. E outro fato: a luz com que ele havia se deparado não era natural, mas vinha dos policiais. A luz natural era impenetrável e, porém, o que me é bastante curioso, a escuridão se deixou penetrar por uma luminosidade proveniente da censura, da patrulha. O que me levanta a suspeita de que M. ainda não gosta de si mesmo o suficiente para não se sentir incomodado com o julgamento do outro. Se a poça de sangue se originou de M., então que “eu” dele partiu e se tornou um “outro” que lhe causou medo?

A estrada de chão estreita é um outro componente do quebra-cabeça. M. me disse que “Eu agora sou outro”. Ele se considera outra pessoa. Esse “eu atual” ficou assustado quando viu o desaparecimento do anterior, representado pela poça de sangue. O que me fez levantar as seguintes perguntas: Não terá sido a cena da estrada a de uma criança que se vê sozinha e indefesa? Não será ela, portanto, uma cena infantil? E quando M. se vê inesperadamente na floresta no meio daquele sangue e policiais em sua volta, não estaria ele tendo dificuldade de encarar a sua vida de adulto?

O sonho é do sonhador. Não vejo respostas para as perguntas que levantei. Quem sabe M. possa um dia fazer análise e entrar a fundo no submundo do seu psiquismo.